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Às vezes demora a saber

 


Demorei a saber. Só quando fiz minha barba, fiquei de bigode e ela fingiu que não viu, que eu soube.

 

Morávamos na mesma casa. À noite, depois que ela chegava, nos sentávamos no mesmo sofá, assistíamos aos mesmos filmes na tevê, cada um no seu canto, cada um no seu mundo. Mas eu não sabia.

 

Dividíamos a mesma cama, debaixo do mesmo edredom, ligávamos o ar que resfriava igual para os dois. Mas os ventos já eram outros, e o calor entre nós não existia.

 

Não acordávamos no mesmo horário nem nos abraçávamos na cama nem nos dávamos bom dia. Tinha dias em que ela acordava primeiro e eu não via. Noutros, eu ia para a sala mais cedo. Nas raras vezes em que nos levantávamos juntos, ela ia para o banheiro dela. Eu, para o meu. Até os banheiros não eram mais nossos.

 

Eu me demorava no banho, meu último lugar de prazer. Quando saía, ela estava na cozinha, de costas para a sala, preparando o café. Eu voltava para o quarto, me aprontava para trabalhar e ia para a cozinha preparar uma xícara, enquanto ela já se arrumava na mesa da sala.

 

Nos sentávamos juntos na mesa de madeira por alguns segundos, enquanto eu me ajeitava na cadeira e ela juntava os farelos que caíam há dias. Depois se levantava, deixava as vasilhas na cozinha e ia para o quarto se vestir, enquanto eu mastigava a mesma rotina há meses.

 

Não morávamos naquela casa. Ocupávamos os cômodos com o que havia restado de nós. Mas eu não sabia.

 

Eu trabalhava de casa. Ela fugia para o trabalho. Eu fugia ficando. À noite, sem hora para voltar, uma hora ela voltava. Ninguém se interessava em perguntar como tinha sido o dia. Nos sentávamos no sofá, cada um no seu canto, cada um no seu mundo. Depois íamos nos deitar, atravessando em silêncio o corredor do quarto. Nos acomodávamos na cama com o ar-condicionado diminuindo ainda mais o calor entre nós. Não dividíamos mais o edredom.

 

No último dia, ela cumpriu a rotina de arrumar o café de costas para a sala, enquanto eu me alinhava no banho. Fiz minha barba. Deixei o bigode. Saí do banheiro, ela ainda de costas. Fui para o quarto, me vesti, depois me vi no espelho do banheiro que não era mais meu. Gostei do que vi. Depois fui para a cozinha. Preparei meu café. Ela me viu, mas fingiu que não. Tomou seu café sem mover o rosto para não me ver de novo. Recolheu os farelos, depois foi para o quarto, arrumou a bolsa e, na porta da casa que ocupávamos juntos, me olhou como se já soubesse, depois foi embora.

 

Então eu soube.

 

Terminei de tomar meu café, limpei os farelos da mesa, peguei o celular, fiz uma foto do rosto, me olhei e mandei para a família dizendo que em breve nos víamos.

 

Então eu fui.

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