top of page
Buscar

Você faria o mesmo



Eu tinha passado uma tarde chorando. Foram cinco horas dentro de um táxi, depois mais duas dentro de um voo. Quando pousei no aeroporto de Goiânia, minha mãe, minha irmã e minha sobrinha me esperavam. Nos abraçamos e choramos juntos. Mas quando cheguei ao velório do pai, já no começo da madrugada, eu não chorei mais. E tive vergonha de não chorar.


Eu não tinha mais água no corpo. Durante todo o caminho de Paraty-RJ a Anápolis-Go eu chorei o que tinha. Fui velando meu pai à distância, enquanto escrevia e lembrava da nossa vida juntos. Ou enquanto pensava em como seria a nossa vida não-juntos a partir daquele dia. E isso me entristecia muito, em imaginar que não o veria mais no quintal da sua casa, não escutaria a cantoria que ele fazia com os amigos, não ouviria as histórias exageradas sobre a sua juventude, não receberia mais seu beijo. Ele nos beijava no rosto como poucos homens fazem com seus filhos homens. Ele nos beijava e até estralava a boca. E nos abraçava apertado.


A caminho do velório eu chorei por isso, por todas as faltas.


Mas quando cheguei, a sala da funerária já estava com as luzes mais baixas. Me lembro da escuridão do local, do caixão lá no fundo da sala, de algumas pessoas sentadas nas cadeiras próximas ao caixão. Não tinha muita gente. Na madrugada só estavam meus irmãos, os tios mais próximos e alguns amigos-ouvintes que o pai cultivava há anos através das ondas do rádio. O pai era radialista e eu tinha certeza que eram eles ali, os ouvintes, querendo ouvi-lo um pouco mais.


Então eu cheguei e, logo na entrada, abracei meus irmãos com abraços e beijos, como o pai fazia. Depois cumprimentei os tios que estavam na entrada e avancei. Foi lá no fundo, onde o caixão estava, que eu não chorei. Caminhei devagar olhando as pessoas ao redor, elas também me viam. Foi nesse escuro que eu senti vergonha por não chorar. O que elas vão pensar de mim? O último filho a chegar; o que não chorou; o que o amava menos...  


Essa é uma memória que eu tenho, desse incômodo de me preocupar com o que os outros iam pensar de mim, enquanto o meu pai era velado na minha frente.


Outra memória clara é a do meu pai chorando.


Meu pai chorava, e chorava bonito. Chorava pelas coisas simples, pelos gestos amorosos, pelo cuidado. E desaguava quando via uma injustiça, quando a tevê mostrava crianças jogando futebol num campo de terra, com a bola feita com meias furadas enroladas em um tecido velho. O pai chorava ainda mais quando elas diziam que não tinham a bola, mas tinham o sonho... Eu olhava para o pai enquanto essas matérias passavam nas manhãs de domingo e o pai estava lá, chorando. Ele não me olhava, de vergonha, mas não deixava de chorar.


Essa não-indiferença do pai pela vida dos outros, essa sua postura emocionada e inegociável diante das injustiças, era a coisa mais bonita que ele tinha. Coisa que ele não escondia quando chorava. O pai não se contentava com a tristeza dos outros.


Eu não chorei diante dele naquela noite, depois de uma tarde inteira de choros. E me envergonhei pelas pessoas não me verem como eu via o meu pai fazer quando estava diante de uma tristeza tão grande.

bottom of page