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Tirar a roupa sem ficar nua


Uma vez eu escrevi um poema assim:

você disse que viria à cidade só para me ver. eu me senti uma cidade inteira

e o nosso amor, um atração turística

que movimenta a economia da região

quando nossos corpos se encontram.

E as pessoas começaram a me enviar mensagens dizendo coisas como "Eu também queria ter uma musa para escrever poemas assim" ou "Que sorte de você ter encontrado um amor" ou "Você está namorando?". A partir do poema, as pessoas começaram a pensar coisas sobre mim. Não só a pensar, como a ter certeza sobre minha vida. E é isso que acontece quando escrevemos, as pessoas pensam, e pensam coisas que nós, escritoras e escritores, não pensamos.

Este poema acima eu escrevi quando o meu pai morreu. Em uma conversa com o melhor amigo dele, emocionado, me disse que ia à cidade do meu pai só para ver o meu pai. Eu guardei essa frase em um bloco de notas e depois escrevi o poema, como se fosse meu pai escrevendo. Este poema não é sobre uma musa minha, um amor, mas sobre o amor dos dois, do meu pai com o seu melhor amigo.

Não adianta tentar adivinhar o que as pessoas vão pensar sobre o que você vai escrever. Primeiro, porque é isso que nós, escritoras e escritores, queremos: que as pessoas pensem. Seria triste se as pessoas não pensassem em nada depois de nos lerem. Este é um sinal de um texto morto, sem vida, quando as pessoas não pensam. Então, escreva e deixe as pessoas pensarem em paz. Segundo, porque tentar adivinhar o que as pessoas vão pensar é impossível. É impossível domar o pensamento humano. Cada pessoa que te lê vai a algum lugar diferente, porque vai para dentro de si mesma, de suas próprias memórias, e não para as suas de escritora. Quando lemos um bom texto, emocionado, com uma boa história, ficamos, como leitores, imaginando as nossas próprias histórias. Quando leio um texto sobre avós, por exemplo, eu imagino os meus avós e não os avós de quem escreveu o texto.

É inútil tentar adivinhar o pensamento de quem nos lê.

Digo isso tudo para incentivar você a tirar sua roupa no texto. Ficar nua, nu. Não o tempo todo, porque pode fazer frio em algum momento, pode chover, ou pode fazer um puta sol e você se queimar. Mas fique um pouco nua, experimente essa sensação com as palavras, e veja o que as pessoas vão pensar. Você vai se divertir ao perceber que, mesmo escrevendo sobre as coisas mais íntimas, as pessoas não vão querer saber tanto de você, mas delas mesmas. É esse o efeito de um bom texto.

Mas, mais do que isso, tire a roupa para vestir outras roupas, experimentar adereços, mangas curtas e longas, roupas neutras e coloridas... A gente tira a roupa no texto para brincar de vestir novos estilos. É assim que se faz ficção, por exemplo, experimentando roupas diferentes.

Mas não se esqueça: o corpo, o centro do texto, ainda é o seu próprio corpo, a sua pele, os seus arrepios. Essa é a base de um texto consistente, crível. Use suas memórias, sentimentos, angústias, alegrias para construir a base do seu texto. Parta delas.

Conheça seu corpo literário. Tire sua roupa antes de vestir roupas novas. E escreva muito. É minha torcida, te ver sem roupa. Na literatura.

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