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Só mais um doce


Outro dia me lembrei que eu não gostava do meu avô paterno.


Foi numa exposição, quando vi uma foto antiga de uma mercearia numa esquina de São Paulo, que a memória veio.


Na infância, eu me sentia obrigado a dizer que gostava do vô. Mas não gostava. Ia visitá-lo na mercearia que ele tinha, num bairro afastado da cidade, só para comer doce de graça. Tinha que pedir a benção do vô antes de poder escolher um doce da vendinha, então a gente se abraçava, e esse foi um dos poucos afetos que trocamos.


Convivi pouco com o vô Zé. Ele era alto, sério, sem muita conversa com a gente. Quando chegávamos na mercearia, ele se alegrava um pouco, nos abençoava e nos deixava escolher um doce. Era assim que o vô nos dava um pouco de amor — ou tentava —, trocando a benção por doce.


Eu e meus irmãos fomos íntimos do outro avô, o Seu Miguel. Era com o Miguel que passávamos a semana enquanto meus pais trabalhavam. Os almoços de domingo também eram ao lado desse vô. Eu me divertia com esse lado da família. Com o outro, o paterno, me lembro de poucos momentos. Não convivemos muito. Imagino que isso se deva à quantidade de irmãos que o meu pai teve, e pela quantidade inumerável de netos que o Seu Zé acumulou. Não há quem tenha tempo para tanta gente.


Meus pais, depois que se separaram, assumiram funções diferentes na minha vida. Fui educado pela mãe, comia bem e era responsável com tarefas, da escola e de casa. O pai era a figura do vô, que me dava doce em troca de amor. Talvez ele fizesse isso por não saber como me educar. Mas sei que também fazia essas graças para dizer que me amava. Era como ele havia aprendido a amar, aos modos do Seu Zé, me deixando escolher o doce. Se a mãe proibia videogame aos finais de semana, o pai fazia vista grossa quando eu escondia o aparelho na mochila e ia para a sua casa. Esse era o doce do pai.


O pai era a mercearia do vô. Eu podia escolher o que fazer quando estava com ele. A mãe era um mercado diferente. A gente também podia escolher qualquer coisa, desde que tivesse o dinheiro para pagar; desde que tivesse estudado como combinado, organizado a bagunça do quarto, tirado nota acima de sete na escola, comido toda a verdura do prato, inclusive a berinjela e a couve-flor.


Do pai, sinto saudade todos os dias. Do Seu Zé, não consigo lembrar do rosto. Tenho um pesar de não ter conhecido a família do pai como conheci a da mãe. Não sei como seria nossa relação hoje caso meu vô paterno ainda estivesse vivo.


Já não gosto tanto de doce. As comidas que comia na marra com a mãe, hoje estão na minha rotina alimentar. Não gosto e não tenho mais videogame há décadas.

Aquela mercearia da foto da exposição me trouxe essa lembrança esquisita. Uma vontade de ter visto mais o vô, de ter sabido mais sobre a pessoa por trás daquela figura séria que me dava medo.


Quando o vô vendeu a mercearia, eu não senti falta do doce. Pouco tempo depois ele morreu, e não me lembro como foi o dia da sua morte.


Mas no dia em que vi a foto da mercearia no museu e me lembrei de que não gostava do vô, senti vontade de comer um doce na vendinha do Seu Zé.

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