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Ser feliz sendo triste


Quando o vô morreu, a vó não chorou.


Ou fui eu que não vi. Mas não me lembro da vó chorando. Me lembro que, pouco tempo depois, ela viajou em uma excursão com as amigas, para o sul do país, e passou uma semana se divertindo.


Outra coisa que me lembro é das discussões que o vô tinha com ela. Dizia “Ah, mulher!” sempre que estava nervoso. Ele ficava nervoso bem rápido, discordava de tudo que a vó dizia ou fazia. Nunca extrapolou nas discussões, mas dava para ver que não era um casamento de muito carinho. Minha mãe dizia que foi assim a vida toda. Na verdade, que foi pior. Quando eu e meus irmãos nascemos, o vô já era um alcoólatra em recuperação. Não o vimos beber, nem bater na vó.


Lembro com clareza dos domingos na casa deles, com os dois ainda vivos. Eles nos adoravam e nos tratavam com afeto e mimos. Mas entre os adultos, avós e os tios, havia muita discussão. Dificilmente se entendiam sobre religião e política. E na minha lembrança, a vó era a que mais ficava calada, não opinava tanto.


Daí o avô morreu e ela não chorou. No velório, ouvi algumas pessoas comentarem que a vó não parecia triste. Eu mesmo vi certa alegria no rosto dela naquele dia. Acho que ela sentiu alívio, sim, pelo fim das tensões, das brigas de domingo... E acho que também sentiu a sensação de liberdade, de poder viajar mais, de ir mais à igreja, de encontrar as amigas, de dormir quando quisesse e sozinha numa cama grande, de assistir seus programas de TV sem que o vô mudasse de canal, de andar pela casa sem ouvir o radinho de pilha ligado em algum jogo de futebol de várzea. O vô ouvia jogo no radinho de pilha o dia todo.


Dá para ser feliz sendo triste... Pensei nisso quando vi minha vó no velório, naquele dia triste. Talvez, estivesse brotando em seu peito a alegria de ter lhe sobrado alguns anos para si. Era a felicidade de viver depois da morte. Isso justifica a vó ter vivido tão bem, saudável e lúcida, depois do dia em que o vô se foi. Até então, a vó não tinha vivido sua própria vida.


Minhas perdas mais recentes me ajudaram a enxergar beleza na tristeza. Na morte do pai, também vi beleza na dor que ele viveu antes da partida, lutando contra seus vícios. Era triste, mas nunca se soltou do amor enquanto batalhava. Era a arma do pai, jogar amor no povo. Achei bonito pensar nisso. Ninguém é só bom ou ruim. Ninguém é um lado só.


No velório, a vó não era um lado só. Não era só a tristeza de perder o homem que viveu ao seu lado por toda a vida. Era também a alegria de poder viver no dia seguinte.


A alegria e a tristeza não estavam em lados opostos no velório do vô. Estavam na mesma pessoa.



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