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Posso ver sua cueca?

Uma pergunta que hoje eu tenho vergonha de responder é sobre a escrita. Normalmente, depois que as pessoas descobrem que sou escritor, é isso que me perguntam: “Sobre o que você escreve?”.

Antigamente eu respondia que era sobre a natureza, a família, as viagens, os amores. Não percebia que, apesar de parecer que sim, essa resposta não dizia muito sobre o que eu escrevia. Dizia sobre o que todo mundo poderia escrever. Então, calibrei a resposta e foi aí que passei a ter vergonha de responder.

“Sobre o que você escreve?”. Hoje, para mim, é o mesmo que me perguntar: “Posso ver sua cueca?”. Eu prefiro que, antes, as pessoas me perguntem outras coisas, descubram sobre minha escrita sem me perguntar diretamente sobre o que eu escrevo. Prefiro que me leiam e, a partir das minhas palavras, adivinhem qual é a cor da minha cueca sem eu ter que abaixar minha calça.

Como você pode perceber, eu não gosto de me mostrar. Mas gosto que me espiem.

Então, sobre o que eu escrevo? Hoje eu respondo que é “sobre mim”. Por isso eu me envergonho um pouco, porque é uma coisa muito íntima para se dizer de repente. Escrevo sobre um assunto que ninguém mais poderia escrever. E não me sinto confortável de mostrar minha cueca tão rápido.

Digo isso como quem mostra agora uma cueca rasgada para uma pessoa desconhecida. Eu preciso das prévias para que a pessoa entenda o que eu quero dizer. Eu preciso de um tempo para que a pessoa compreenda por que a minha cueca está rasgada. É uma cueca especial. Acredite. Mas ela não vai acreditar e vai achar que eu não me cuido. Vai começar a pensar coisas que eu não sou. Não vai entender o que eu faço com as palavras. É isso que me deixa envergonhado.

Escrever sobre mim é muita coisa. Não dá para contar sobre tudo. Por isso também tenho vergonha de dizer que escrevo sobre mim, pois tenho medo de que as pessoas me confundam com um adolescente escrevendo diários. Escrever sobre mim não é isso. Não é escrever tudo que eu vivo. Pelo contrário. É, o tempo todo, conseguir fazer escolhas difíceis como: o que contar? O que não contar? O que aumentar? O que esconder? O que revelar? Inclusive: o que inventar? Escrever sobre mim também é sobre as coisas que só eu posso inventar.

Deixe-me tentar me explicar. Escrever literatura é pegar tudo isso que estou dizendo e ainda colocar numa máquina de lavar, ensaboar bem, limpar até deixar tudo bonitinho, cheiroso e macio, e depois ainda ver se não ficou manchas, botar para secar, tirar do varal antes que a chuva comece, tirar do sol antes que as roupas queimem. Escrever sobre mim é muita coisa.

Então é disso que eu não gosto. De não ter tempo para falar sobre todas essas coisas quando me perguntam sobre o que eu escrevo. E assim me parecer com um adolescente escrevendo.


No fim, “É impossível parar um coração”. Essa frase me ajuda a abaixar minhas calças quando o leitor me pergunta. Me ajuda a seguir tranquilo. Porque é impossível parar a vontade de escrever um texto como esse, sobre escrita e cuecas.

Por fim, sobre o que eu escrevo? Sobre minhas cuecas pretas. Eu só uso pretas.

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