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Perdoai as nossas ofensas


Quando nasci, o vô já tinha vitiligo. Não conheci meu vô de outro jeito, sem as manchas por todo o corpo. Desde pequeno convivi com os dois tons de pele que ele tinha, o rosa e o marrom. Foi mais crescido que quis saber por que o vô era assim, e foi aí que aprendi sobre a doença. A pele do vô era diferente, mas nunca senti medo nem estranhamento. Só as pessoas que não haviam crescido com ele que estranhavam, sentiam algum medo ou espalhavam mentiras.


Sobre as diferenças, tenho outros exemplos. Eu mesmo tenho um irmão gêmeo idêntico. Já escrevi sobre isso algumas vezes, já falei sobre isso em rodas de amigos, na escola. Sei que vou passar a vida a comentar sobre o assunto. Quando digo, as pessoas ficam curiosas, querem ver fotos, saber o que já fizemos, se já beijamos a namorada do outro, se já trolamos a professora. Acho interessante, pois normalmente eu me esqueço que tenho um irmão idêntico. Eu nasci assim e não consigo pensar numa vida diferente. É o normal para mim. Não é uma doença, não é um problema, mas também é, como foi para o meu avô, um jeito diferente de viver.


Aí tem a religião, um assunto polêmico, pois cada um tem um jeito diferente de viver sua fé, mesmo que na mesma religião, na mesma igreja, na mesma casa. Quando nasci, eu não acreditava em nada. Depois aprendi a acreditar em deus, em seguida aprendi a acreditar nos espíritos e, por fim, me tornei ateu. Demorei a encontrar esse meu lugar de paz, minha própria fé — inclusive, chamar isso de fé pode ser motivo de guerra entre os próprios ateus.


Hoje, quando digo que sou ateu, o mais comum é ouvir pessoas questionarem meu ateísmo, como se eu não soubesse ser ateu ou como se eu fosse ateu por falta de informação. Aí elas vêm me informar, me ensinar a ter fé. Ou melhor, vêm me roubar o direito de ter a minha fé.


Outro dia, com amigas muitos queridas, gastei mais tempo me defendendo de ideias que não são minhas do que falando sobre mim mesmo. Ouvi que “Você é ateu, mas acredita na espiritualidade, pois acredita na natureza e natureza é espiritualidade”. Eu queria dizer que natureza, para mim, não é espiritualidade, é natureza, e que espiritualidade, para mim, não é nada. Quando digo isso não quero negar a espiritualidade de ninguém, mas simplesmente dizer sobre mim. Comigo é assim que tenho paz, é assim que a vida tem sentido. Esse meu lugar não é vazio. Pelo contrário, está preenchido de pessoas, de experiências, de gostos e desgostos, de memórias, de amores e saudades. Mas não pude dizer isso, tive que me defender, tive que negar uma fé que não era a minha. Tive que falar de outra fé para justificar meu lugar de paz.


Noutra vez, uma pessoa que tinha medo da minha fé me perguntou o que eu faria se meu pai estivesse prestes a morrer, se eu “não pediria ajuda a deus?”. Mas eu não tenho medo da minha fé, pensei. O que eu tenho é o mesmo direito que qualquer outra pessoa tem de sentir tristeza com um pai à beira da morte. Eu senti tristeza. Depois o meu pai morreu, como muitos outros pais que morrem, mesmo depois de rezas e orações.


Quando meu pai morreu, o mundo ficou menos amoroso. De quem é o mérito? De quem é a culpa?

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