Odiar adeus
- Lucão

- 20 de jan de 2024
- 2 min de leitura

Eu gostava dela viva. Não morta.
Essa foi a frase que o meu vô usou para dizer que não iria ao velório da sua própria mãe. Ele tinha horror a velórios. Isso quem me lembrou foi a minha mãe. Então me recordei, no mesmo instante, de algumas cenas do meu vô com medo da morte.
Ele sofria demais quando recebia a notícia de que alguém da família havia morrido. E depois começava a arrumar as desculpas para não ir ao enterro. Tinha que limpar a sala do grupo de alcoólatras anônimos que frequentava; ou tinha que cuidar dos netos; ou tinha que ir ao mercado fazer compras. Ele escolhia uma desculpa e não ia. Depois fazia o seu próprio velório em casa, um evento mais triste do que o próprio velório. Eu, que já vi tanta gente chorar em enterros, sabia que o evento que o vô fazia em casa era mais triste.
Até que o vô adoeceu. Ficou por quase um ano lutando contra um câncer. Nos últimos dias, foi internado às pressas, com a doença avançando rápido e desligando seu corpo órgão a órgão. E fomos nós, os netos, que nos revezamos para acompanhá-lo no hospital no seu derradeiro período de vida.
Eu fui o último a vê-lo vivo. Durante o meu período de acompanhante, o vô respirava fundo, muito fundo, até encher todo o peito, até inflar a barriga de tanto ar que puxava. Depois parava nessa posição inflada por uns segundos, infinitos segundos para mim, e soltava o ar de uma vez. Esse ciclo se repetiu e piorou durante toda a minha estadia no hospital com ele, com movimentos cada vez mais lentos, cada vez mais longos. Cheguei a pensar, mais de uma vez, que o vô tivesse morrido. Ele já estava inconsciente, conectado a aparelhos que faziam bipes altos, que também me assustavam. A cada nova respiração, eu pensava que o havia perdido.
Eu não queria que ele morresse comigo. Não era o mesmo medo que ele tinha da morte. Eu não tinha medo da morte. Mas tinha medo de que o vô mais afetuoso morresse na minha frente. Eu era novo demais para lidar com aquilo.
O outro neto chegou na hora marcada, na troca do turno, no mesmo momento em que o vô fazia seu maior esforço para respirar. Eu não quis mais olhar. Fui rápido com o primo, troquei algumas palavras e saí correndo do hospital.
Quando cheguei em casa, o telefone tocou, a mãe atendeu e nos contou que ele tinha ido para UTI. Dois dias depois, nos deu a notícia de que ele havia morrido. Não precisaria mais encher o peito, nem inflar a barriga para respirar. E senti um alívio de não o ter visto morrer. Eu não queria aquela lembrança.
Só quando a mãe falou sobre o velório, que eu senti a tristeza mais profunda. A mesma que o vô sentia quando alguém da família morria.
Eu gostava dele vivo. Não morto.






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