top of page
Buscar

Incômodos


Quando comecei a trabalhar com literatura, há mais de uma década, minha ex-companheira saía para trabalhar e me deixava uma lista de tarefas para o meu dia. Como se eu não trabalhasse.

Depois da separação, fui morar por um tempo com o meu irmão mais velho e passei a ter vergonha do meu trabalho.

No começo, eu dormia tarde, pois escrevia até de madrugada, e acordava depois do irmão. Aliás, eu dormia no quarto que era o seu escritório. Então, pelas manhãs, quando eu chegava à cozinha, ele já estava na bancada do café, trabalhando. Daí ele pegava o computador e ia para o escritório, o meu quarto, trabalhar de lá. Todos os dias eu sentia que eu estava atrapalhando.

Eu trabalhava na sala, da mesa de jantar. Começava o dia lendo, depois escrevia. O mesmo ritual que perdura até hoje: primeiro a leitura, depois a escrita. Quando me cansava da cadeira de jantar, me sentava no sofá com um livro em mãos. Lia por horas. Era quando eu me sentia mais confortável. Até meu irmão aparecer para buscar um café. Eu ficava constrangido quando ele me via lendo do sofá. Eu chegava a dar desculpas por estar no sofá a essa hora. As costas doíam, eu dizia, como se eu estivesse fazendo algo errado.

Demorei seis meses para terminar o livro novo. O romance era minha quarta obra. meu trabalho já não era brincadeira há alguns anos. No último mês da escrita do romance, sem conseguir terminar o livro da casa do irmão, passei dias em cafés, escrevendo. Foi assim que terminei Amores ao Sol, fora daquele ambiente acolhedor, mas, de alguma forma, constrangedor para mim.

Nesta mesma época, meu pai me chamava de “poeta vagabundo”. Quando nos reuníamos para beber em sua casa e seus amigos chegavam, ele nos apresentava assim: “Este é o Rodrigo, trabalha no agro”, “Este é o Henrique, professor” e “Este é o Lucão, o poetinha vagabundo”.

Eu não gostava do apelido, me doía ouvir. Da mesma forma que me irritava com a minha ex e me envergonhava com o meu irmão. Parecia que eu não havia dado certo. Que o meu trabalho era pior. Eu me sentia cada dia mais preso ao sofá.


Demorei a falar com meu irmão sobre isso. Quando conversamos, contei sobre a vergonha de trabalhar na frente dele, de abrir meus livros enquanto ele abria planilhas e falava sobre créditos e cobranças ao telefone. Eu mesmo duvidava do meu trabalho. Era isso. Eu me sentia cada dia mais espremido por uma parede de um cômodo que não era meu.

Num sábado, no meio de uma discussão boba com o pai sobre sua saúde, ele se irritou e foi dormir mais cedo. Nos deixou no quintal, sozinhos. Fomos embora, mas prometemos voltar no dia seguinte para uma conversa franca. E sóbrios.

Foi nessa conversa que, além de falar sobre nossa preocupação com sua saúde, falei sobre o apelido. “Eu queria te pedir para não me chamar mais de poeta vagabundo”. Mas é brincadeira, ele dizia, enquanto o Rodrigo contava sobre minha rotina, para convencê-lo de que eu não era vagabundo. Meu irmão me defendeu. Foi ali que me lembrei que eu trabalhava demais.

A vergonha ainda demorou a passar. Mas terminei o livro. E celebramos. O pai não teve tempo para celebrar comigo. Nem de não me chamar mais de vagabundo. Adoeceu poucas semanas depois que o meu livro ficou pronto. Morreu com vinte dias na UTI. O apelido foi embora pelo caminho mais triste.

Naquele dia da conversa, eu vi o amor escorrer pelos olhos do pai. Eu sabia que ele não fazia por mal. Mas ele não sabia que me machucava. Eu precisava falar.

De algum modo, quando ele me chamava de vagabundo, ele brincava com ele também. Se eu gosto de contar histórias com palavras é porque o pai também gostava de contar histórias. Eu cresci vendo meu pai trabalhando, e muito. Ele não era poeta, mas era um jornalistinha vagabundo.

E dos bons.


bottom of page