top of page
  • Twitter - Black Circle
  • Ícone do Instagram Preto
  • Ícone do Facebook Preto

Homens meio valentes

  • Foto do escritor: Lucão
    Lucão
  • 17 de mai. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 18 de mai. de 2024



Meu pai tentou ser um homem valente algumas vezes. Mas já nas características físicas ele entregava que seria, no máximo, um homem meio valente.

 

O pai era franzino. Um e sessenta e oito de altura, braços e pernas finos e uma barriga grande, que cultivava bebendo cerveja sentado no quintal, quietinho, sem incomodar ninguém. Longe de ser um homem valente. Mas às vezes ele se esforçava para ser.

 

Era quase meia-noite, o pai, já separado da mãe, levava eu e meus irmãos de volta para casa. Ele tinha bebido um pouco e dirigia em velocidade baixa pela avenida Brasil. A poucas quadras de casa, de forma repentina, virou o volante para a esquerda e puxou o freio de mão, provocando uma pequena derrapagem, tudo muito controlado. Tomei um susto. O pai não era de fazer essas coisas, e até fiquei com medo do que viria depois. Mas ficou só nisso. E antes de nos deixar em casa, ainda pediu, com voz amedrontada, para que não contássemos para a mãe. O oposto de um homem valente.

 

Quando soube que eu e meu irmão, assim como ele, tínhamos medo de briga, e que até corríamos dos meninos que nos ameaçavam na rua de casa, o pai nos obrigou a fazer artes marciais, como se preparasse seus filhos para a guerra. Mas como não sabia que existiam muitas artes marciais, acabou nos matriculando no karatê, a menos marcial das artes. Nas aulas, não aprendi a bater nem a me defender, mas minha mãe disse que melhoramos bastante nas tarefas de varrer e passar pano. O que serviu de alguma forma.

 

Quando começou a viajar com seus amigos mais antigos, meu pai quase virou um cara valente. Passou a frequentar as pescarias, que a gente sabia que ele não gostava, mas que ia para agradar a turma. Foi lá que o pai ganhou o apelido de “ponto de referência”. Quando queriam encontrar as cervejas, procuravam pelo meu pai, que estava sempre ao lado das caixas de isopor, sentado, sem se mexer o fim de semana todo. Um homem quase valente.

 

Outra coisa que provava que o pai nunca seria o valentão é que homens valentes consertam suas casas sozinhos, quebram paredes, fazem os próprios móveis numa carpintaria improvisada no fundo, desmontam eletrodomésticos sobre a mesa da cozinha... Mas meu pai, quando tentou trocar a fechadura da porta dos fundos, deixou um buraco tão grande na madeira, que a Nina, sua cachorra, não precisava mais da porta aberta para ir e voltar do quintal, passava pelo buraco. Depois o pai ainda teve que comprar uma porta nova, com medo de ter sua casa assaltada.

 

Meu pai cobriu as “Diretas já!”. Foi um apaixonado na profissão de jornalista. Ia atrás da notícia com garra. E talvez tenha sido essa valentia que o encorajou a criar, no último dia da ditadura, um movimento revolucionário armado. Foi sentado no boteco, já depois da saideira, quando soube que a ditadura ia acabar, que ele e seu grande amigo fundaram o “Movimento Revolucionário Armado Menino Jesus de Praga”. Depois foram dormir. No outro dia, quando acordaram, a ditadura já tinha acabado. E o movimento foi encerrado sem cerimônia.

 

O pai adorava contar essa história. Todos riam. E depois ele ficava no quintal bebendo cerveja, quietinho... Mas sempre alerta para uma nova revolução.

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page