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Facas que voam

Vocês são melhores do que eu, disse minha mãe enquanto conversávamos sobre as nossas vidas. Isso foi há pouco tempo.


Também faz pouco tempo que minha mãe me contou que já apanhou da minha avó até de faca.


Foi aqui em casa, quando ela veio me ver em São Paulo. Preparei um café, nos sentamos na sala, conversamos por horas e ela me revelou a história, que a vó batia nela com tudo que encontrava pela frente. E uma vez foi com uma faca. Não se lembra por que apanhou, mas me disse que não precisava de muitos motivos para apanhar. Era comum os objetos voarem em sua direção. Quando foi uma faca, precisou desviar.


Foi difícil acreditar que aquela senhora, minha avó, a velhinha que fazia a sesta toda as tardes com as pernas esticadas sobre o sofá, com o corpinho pequeno e cheinho ocupando os três assentos, era a mesma que batia na minha mãe com faca. Aquela que, para os mais novos da família, era uma santa. A mineira, que fazia os cafés, os biscoitos de queijo, os bolos e as massas dos pães, era a mesma que arremessava objetos cortantes sobre minha mãe.


Se minha mãe não dava motivos para apanhar — como se existisse um motivo para uma filha apanhar — minha avó tinha motivos para bater. Ela batia na filha para revidar as pancadas que levava do marido. Meu avô era um alcoólatra. Não era raro chegar bêbado em casa e brigar por qualquer coisa. Era inseguro, ciumento, inventava histórias sobre a avó, que ele mesmo acreditava e depois a castigava. Numa dessas noites, ele a acertou enquanto ela ainda estava grávida da minha mãe. Foi a primeira vez que minha mãe apanhou.


A mãe apanhava por vingança. Era isso. A avó não podia bater no bêbado, então revidava na filha, com cinto, chinelo, varas que recolhia do quintal. E facas.


Enquanto a mãe me contava, eu voltava no tempo, lembrava das brigas, dos sermões noite à fora, dos tapas fortes que a mãe me dava. Voltava e pensava que era tudo menor, tudo menos perigoso que uma faca voando em minha direção.


Ninguém dá motivos para apanhar. Eu não dava. Eu tirava notas baixas na escola, esquecia a toalha do banho sobre a cama, deixava a pia cheia de louças para lavar. Não eram motivos para apanhar. Mas minha mãe também, de algum modo, tinha motivos para bater. Tinha essa raiva histórica. Tinha a vingança. A filha que havia aprendido a educar apanhando com facas, nunca jogou uma faca em mim. Jogou um pouco de raiva. Uma raiva que, com o tempo, foi dissipando.


Quando ouvi a história, ficou mais fácil aceitar os tapas que recebi na infância. As mulheres da minha família sofreram nas mãos dos homens que eu e meus irmãos aprendemos a admirar. E para vingar esses homens, que batiam em mulheres, apanhamos um pouco. Bem menos do que elas. Muito menos.


Possivelmente, minha mãe apanhou menos do que minha avó. Certamente, eu apanhei menos do que minha mãe. Minha irmã caçula apanhou menos do que eu. Minha sobrinha nunca apanhou. As facas pararam de voar.


Nessa mesma conversa que tivemos, minha mãe me disse que se arrepende. Que se fosse hoje, faria diferente. Isso ela não precisava dizer. Eu já sabia.


Outra coisa que minha mãe fez na minha vida foi jogar amor sobre mim. E eu não precisei desviar de nenhum.

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