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Eu precisava falar mal do meu pai


Já falei bastante sobre meu pai nos meus textos. No meu primeiro livro de crônicas, de 2020, falo da saudade que ele deixou, do amor, da alegria que é recordar suas histórias... Mas ninguém é só isso, o bem.


E agora entendo que enquanto eu só falava bem, eu não o entendia. Nem me entendia. Eu precisava falar mal do meu pai para continuar amando o cara que me deu muito amor.


É difícil amadurecer, principalmente os pensamentos duros, os sentimentos calcados numa sociedade conservadora. Foi difícil transformar o sentimento de amor puro que eu sentia pelo meu pai por um sentimento de amor não-incondicional. De um amor que poderia acabar caso o pai não merecesse mais.


De um amor que eu escolhesse amar.


Eu escolhi amar meu pai.


Parece estranho o que quero dizer, mas vou tentar me explicar. E se não ficar tão claro o meu pensamento, talvez eu ainda esteja pensando...


Para falar do meu pai, preciso falar um pouco da mãe, que sofreu com o machismo dos homens que se relacionou. O pai de minha mãe, meu avô, não foi um bom homem. Foi um alcóolatra que não dava amor como uma filha merecia. Quando eu nasci, esse avô já não existia. Existia um outro, que não bebia, que me dava afeto como nunca deu à minha mãe, que me abraçava, comprava presentes, preparava os lanches da tarde e me ligava quase todos os dias. Minha mãe teve que lidar com os filhos homens se relacionando com seu pai da forma que ela nunca havia se relacionado com ele.


Outro homem na vida da mãe foi esse que mencionei, meu pai. Eles se amaram muito. Até minha mãe perceber que, outra vez, estava dividindo a casa com um alcóolatra — um pouco mais sofisticado, mas igual.


O pai era jornalista, bem-informado, tinha o charme da fala, de ser engraçado, de ser um homem bonito... A mãe era linda, eu vi isso nas fotos e, modéstia à parte, dos filhos, sou o que mais se parece com ela. Os dois formaram esse casal bonito por um tempo. Até o pai repetir a rotina do vô, de sair à noite com os amigos e deixar a mãe sozinha com os três filhos, de não fazer outro programa que não fosse beber com os amigos em todos os finais de semana. O pai tinha essa vida pouca, autodestrutível e sofrida para uma mulher que já havia passado por isso.


Eu só entendi essa história quando cresci, às vésperas da morte do pai. Outras histórias mais duras eu soube depois, tomando café com a mãe e chorando juntos. O pai-herói deixou de existir. Tirei a capa do velho. Vesti sobre a mãe uma capa confeccionada a ferro e fogo, uma roupa forjada na luta que nós homens forçamos as mulheres a entrar e não ajudamos a sair.


Eu precisava falar mal do meu pai para essa mulher se sentar no lugar mais importante na mesa da família.


Eu precisava falar mal do meu pai, ao menos um pouco.


Mas essa crônica nem é sobre ele.

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