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Eu dormi na cadeira da dentista


É a segunda vez que durmo na cadeira da dentista. Um acontecimento tão natural quanto improvável: eu, com um “macaco” de boca, expondo os dentes da frente como num filme bobo de comédia, enquanto a dentista aplica produtos em mim. Eu dormi assim — e até sonhei —, deitado na cadeira da dentista.


Faz seis meses que vou frequentemente a essa clínica. Faz seis meses que olho para a mesma lâmpada queimada no teto — o que dá um ar de clandestinidade para o local —, enquanto a dentista cuida da minha saúde bucal. Começamos os encontros pela limpeza dos dentes. Depois, por sugestão dela, trocamos uma obturação antiga por uma mais moderna. E passamos a cuidar das gengivas e de detalhes menores, sem pressa. Toda semana eu volto à cadeira e fico por, aproximadamente, uma hora imóvel, na posição horizontal.


Então passei a dormir enquanto ela mexe na minha boca. Achei mais proveitoso passar o tempo na cadeira assim, descansando.


Ao contrário do pavor que as pessoas têm, não tenho medo, nem da dentista nem do barulho do motorzinho triscando os dentes. O que eu tinha era pouca paciência para ficar deitado por uma hora esperando o serviço terminar. Agora que passei a dormir, até sinto saudade da cadeira.


Há um mês, eu dormi pela primeira vez. Foram pequenos cochilos durante a sessão, um preparatório para a sessão seguinte. Daí, nesta semana, dormi com gosto, enquanto a chuva caía no Centro de São Paulo. Clima perfeito para uma soneca. Eu até sonhei, e foi com o vô Miguel. Não por acaso, com uma recordação dele limpando a dentadura.


Na infância era comum flagrar o vô lavando os dentes fora da boca. Ele colocava um copo de água sobre a pia do banheiro, retirava a dentadura da boca, mergulhava-a no copo e escovava as gengivas. Depois, retirava a dentadura do copo, segurava-a com as mãos e a limpava, como se engraxasse um sapato. A cena terminava com o enxague da dentadura na pia e com o reencaixe dos dentes na boca. No começo eu achava estranho ver o vô lavar os dentes assim. Mas me acostumei.


Numa das idas à clínica, perguntei à dentista sobre as dentaduras. “O que aconteceu com elas, por que ninguém mais as usam?”. E ela me explicou que, por conta da educação bucal e das novas tecnologias, a tendência era que as dentaduras dessem lugar aos implantes e próteses melhores. Sim, ficou melhor para quem precisa. Menos para os netos, que não verão mais seus avós engraxando os dentes.


Voltando, nesta mesma semana do cochilo, terminei de ler “Dentes”, do Domenico Starnone. Uma história extravagante sobre a saga de um homem que tenta consertar os dentes depois que sua mulher lhe acerta um cinzeiro na boca. Entre crise matrimonial e flashes da infância, ele visita clínicas atrás de novos dentes. Terminei a leitura agradecendo pela minha arcada dentária perfeita e minha saúde mental em dia.


Então a sessão terminou, eu acordei, agradeci à dentista, depois fui à recepção agendar minha próxima consulta. Quando pensei em avisá-los sobre a lâmpada estragada, me lembrei que não gosto de dormir com a luz acesa.


Fui embora da clínica torcendo para que ninguém note a lâmpada, ao menos até a minha próxima soneca.

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