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Entre Picasso e Dalí


No dia em que uma amiga do Caminho comprou um violão para resolver um problema que vivia, percebi que seu problema era maior.


É comum encontrar pessoas pelo Caminho de Compostela tentando resolver problemas que não conseguiram resolver antes de viajar. É comum as pessoas acreditarem que o Caminho resolve problemas. Mas agora eu vim aqui revelar — como se eu fosse o contrário de um guru — que o Caminho não cura nada.


Uma viagem não resolve um problema. Fugir não é remédio, apesar de aliviar um pouquinho. O que cura um problema é encarar o problema — e fazer terapia toda semana.


A pergunta que mais escuto quando digo que fiz o Caminho por duas vezes é: “O que você foi resolver lá?”. Bom, como eu já aprendi a mentir, cada vez que me perguntam, invento uma história. Já disse que estava querendo mudar de profissão. Mentira. Já disse que fui resolver as questões do meu ex-casamento. Mentira. Já contei também que eu precisava me encontrar. Mentira, eu sabia onde eu estava.


Então, o que eu fui fazer no Caminho? Nada. E tudo.


Fui viajar e viver histórias diferentes: fui conhecer lugares novos; fui comer paella; fui caminhar sozinho de madrugada; fui beber drinks, vinhos e chopes com outras pessoas; fui treinar o espanhol; fui sentir oito câimbras na panturrilha numa mesma noite...


Foi aí, no meio do Caminho, que vi minha amiga comprar um violão e dizer: “Agora eu não preciso de amigos, pois tenho um violão”. Depois a vi despachar o violão, pois não aguentava mais o peso nem o barulho da nova amizade.


Outra vez, caminhando num dia bem quente, parei num café de beira de trilha, um pequeno oásis para os peregrinos descansarem. Foi lá que encontrei um senhor de aproximadamente setenta anos tocando blues. Emocionado, eu o filmei e, no outro dia, mostrei a filmagem aos amigos espanhóis. Foram eles que me contaram que esse senhor havia sido preso naquele mesmo dia. Era traficante de drogas.


Outra vez eu menti dizendo que eu havia caminhado todos os oitocentos e dez quilômetros da segunda jornada. Mas teve um dia em que eu não caminhei. Nos empolgamos na noite, fui parar numa boate, dancei até duas da manhã com uma turma de amigos do mundo todo. Depois fui dormir num hotel. No outro dia, de ressaca, pegamos um ônibus e fomos para a cidade em que deveríamos chegar caminhando.


Minha vida no Caminho foi imensa. No primeiro ano senti tanta dor que não pude caminhar todo o percurso planejado. No segundo, caminhei tão bem que poderia ter continuado, seguido para o litoral, depois voltado para a França, não sei. Mas não quis. Quando cheguei a Santiago de Compostela, decidi ir a Barcelona ficar mais uma semana com Maitê, uma pessoa que conheci pelas trilhas espanholas. Fui a Barcelona beber no bairro gótico, no mesmo bar e na mesma mesa em que Picasso se encontrava com Dalí. Fiquei por horas entre os dois.


Então, o que eu fui fazer no Caminho? Nada e tudo.


Assim como se faz em qualquer lugar.

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