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Direito de sonhar



Eu não sou de economizar em sonhos. Quando me deito, tenho muitos. E a cada vez que acordo na madrugada, troco de sonho. Apesar de, nesta noite, ter sonhado só com o meu pai.

 

Penso que tenho sonhado mais com ele pois acabo de escrever um novo livro, um romance, em que o narrador enfrenta um passado duro com o pai. Já tive momentos, enquanto escrevia esse livro, em que precisei me lembrar de quem era o meu pai de verdade, para não o confundir com o personagem da história. O meu era um cara bom, o do livro, um monstro.

 

Mas não é sobre o meu pai que quero escrever agora. Quero falar de sonhos. De como eles me ajudam a tocar a vida e a atravessar os dias ruins. E se eu trocar a palavra sonho por livro, dá igual. Fiquei pensando nisso enquanto olhava para os livros da estante, no tanto de sonhos que já tive e li, e que me ajudaram a caminhar.

 

Às vezes escuto pessoas dizerem que melhor que sonhar é fazer, como se os sonhos tivessem essa função, de serem realizados. Um erro. A função de um sonho, e de um livro, é sonhar. É viver o que não cabe na vida. Dizem isso dos sonhos, que preciso realizá-los, e assim me roubam o direito de sonhá-los. Quando eu sonho que estou pendurado no pescoço de uma girafa e depois acordo, acho graça, e está já feito o desejo do sonho: o de achar a graça em mim. Por isso não gosto que analisem o que sonho, como se tudo que leio e imagino precisasse ser entendido. Não. Não me roubem meu direito de sonhar. Eu preciso dos sonhos como uma girafa precisa do pescoço comprido para viver.

 

Quando eu era criança, na escola pública que eu estudava, todos os dias, no final da aula, tinha briga na porta da escola. Eu morria de medo de um dia quererem brigar comigo. Eram murros e chutes que eu via de longe e me faziam correr para casa quando tocava a sirene de ir embora. Então um dia eu sonhei que no recreio da escola eu virava um lobisomem, um bicho alto e forte, capaz de vencer qualquer briga. E acordei entusiasmado. Passei a acreditar que no recreio da aula eu viraria o lobisomem. Só me lembro disso, daquele sonho ter permeado os dias seguintes e me dado força para ignorar as brigas. Foi a história do sonho, como as histórias dos livros, que me ajudou a andar.

 

Ainda na juventude, outro sonho me fez caminhar. Outra história que não se realizou, mas que me ajudou a seguir. Foi quando eu, meus irmãos e minha mãe passamos por um momento financeiro difícil, e tivemos que lagar nossa casa para morar na casa dos avós. Por alguns meses, dividimos um quarto pequeno entre nós cinco. E na semana de uma chuva forte, que enxarcou a sala de livros que minha mãe dividia com a avó, um sonho surgiu quando a vida triscou no lugar mais fundo: uma história de uma herança de um barão correu pela família. E eu acreditei, pensei que ficaria rico, e fui empurrado adiante por mais uma história absurda. Foi o sonho que me fez esquecer a tristeza, e não a realidade. Meses depois, estávamos em uma casa só nossa outra vez.

 

Então, quando as águas enxarcarem a sala, ou os murros e chutes começarem lá fora, que eu me lembre de sonhar. Ou de abrir um livro. É por esse direito que brigo.

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