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Diga-me com qual lente andas




Vem aqui na sala ver uma coisa. E eu fui.

 

Era a nova televisão do meu irmão que havia chegado. Ele já tinha uma no seu quarto, outra no de visitas onde eu dormia e uma na sala, todas grandes com imagens em alta resolução. Mas agora havia comprado uma maior e com mais definições. Era uma 4k, e com alguns outros quês.

 

Venha aqui na sala ver a televisão. Era uma tevê mais inteligente e mais rápida também. Então ele ligou a tevê e botou um filme em 4k para me mostrar a diferença. Mas eu não notei a diferença. Até disse uau! Que imagem!, pois sabia que era o que ele esperava que eu dissesse para a nova tevê de sessenta polegadas. Mas não vi a diferença, e achava que era culpa da minha falta de interesse por tecnologias. O que você vai fazer com essa tevê da sala?, perguntei. Vou colocar no meu quarto. E a do meu quarto vai para o seu. E a do seu eu vou vender.

 

Algum tempo depois, eu me mudei para o meu próprio apartamento, fui morar sozinho outra vez. E aquela tevê mais antiga, a que o irmão ainda não havia vendido, ele me deu de presente de casa nova. Adorei. Achava a tevê ótima, gostava da imagem. Mas o irmão ainda me alertou para trocá-la quando pudesse, que já era um aparelho ultrapassado. Para não decepcioná-lo, eu disse que a trocaria em breve.

 

Na semana passada, cinco anos depois, fui ao médico revisar os olhos. Fazia tempo que sentia cansaço e dores. Coisa normal de uma pessoa com quarenta anos sentir, eu pensava. Então, no fim da consulta, o médico me entregou uma receita para óculos de grau. Miopia e astigmatismo nos dois olhos, ele me disse antes de eu sair. Mandei no whatsapp da família a mensagem de que eu havia entrado para o grupo dos míopes. Minha mãe usa óculos desde nova, com muitos graus, tipo 4k. O meu gêmeo usa as lentes há alguns anos e me disse que já havia subido de grau algumas vezes. A Gabi também usa. Só o Digão, o da tevê 4k, nunca precisou.

 

Ontem fui buscar os óculos e descobri que eu era um adulto que não enxergava as bordas da vida. Fiquei o dia impressionado com a resolução das imagens que surgiam à minha frente. Na rua, eu enxergava de longe, muito longe, os contornos exatos dos prédios. Parei de olhar para as pessoas por medo de que me confundissem com um assediador. Eu assediava suas linhas e não suas curvas. Depois reparei nas pessoas que também usavam óculos. E imaginei-as se impressionando com o fino da vida nos primeiros dias de lentes. Tive que tirar um pouco os óculos, pois comecei a andar como um pato, tateando o chão com os pés. Dizem que isso passa com os dias. Tomara que o espanto, não.

 

Dentre as coisas que quero ver de novo, fiquei curioso para enxergar o meu irmão gêmeo. Quero ver nele os novos detalhes que são só nossos, nossas novas linhas idênticas, nossa nova pele, nosso novo jeito de se parecer e nossas novas diferenças.

 

No fim do dia, cheguei em casa, tomei um banho, os olhos não doíam mais como nos outros dias. Fui para a cama, liguei a tevê do quarto e então entendi meu irmão emocionado com os 4ks. Mandei mensagem a ele, com minhas novas resoluções sobre as tecnologias. Estou adorando. Ele riu.

 

E então eu pude ver até os contornos dos kkkks que ele enviou.

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