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Desculpas não colam


Um tênis de corrida dura, em média, quinhentos quilômetros.

Eu deveria saber disso antes de fazer o segundo ano do Caminho de Compostela com o mesmo tênis do primeiro.


Foi em Astorga, depois de caminhar por quase quinhentos quilômetros, que o solado começou a ruir. A sola esfarelou-se e eu tive que tomar uma providência. Fui a um sapateiro, que me prometeu, para o fim do dia, uma sola novo. Era o melhor que se podia fazer. Comprar um tênis novo seria perigoso. Não se usa tênis novo numa caminhada longa sem antes amaciá-lo.


No fim do dia, voltei ao sapateiro e meu calçado estava pronto, com um solado emborrachado perfeito. Ou quase.


Nos primeiros quilômetros da caminhada do dia seguinte, a nova sola começou a se soltar. A cola não havia aguentado o calor do asfalto e derreteu. Era verão na Europa, o calor estava extremo. Eu não estava mais em Astorga para refazer a cola, estava caminhando pelas trilhas do interior da Espanha ao lado de outros peregrinos.


Foi quando uma peregrina da Holanda se apresentou com uma cola nas mãos. Me disse que era uma cola resistente, que havia testado nos próprios calçados. Me entregou o produto para que eu o usasse sem economia. Agradeci e parei no primeiro café que encontrei. Meus amigos e a peregrina também se quedaram comigo. Era nove da manhã, a holandesa pediu um chopp, e o bebia como água enquanto me ajudava a colar as borrachas no tênis.


A peregrina era mais velha, falava alto e num inglês acentuadamente britânico. Contava histórias sem parar, falava da Holanda enquanto bebia caneco atrás de caneco. Duas amigas que caminhavam comigo se afastaram devagar, quanto mais a peregrina conversava. Reparei que quase ninguém a escutava. Era um encontro estranho, mas ainda terno. A ironia de ser salvo por uma pessoa aparentemente chata era um sentimento que me deixava constrangido comigo mesmo.


Afinal, quem eram os verdadeiros chatos nessa história?


A cola parecia mesmo eficaz, e secou rápido como um superbonder. Ficamos por meia hora no café, esperando, por segurança, a cola firmar. Depois saímos, com a turma mais à frente de nós. Caminhamos juntos, eu e a holandesa, e conversamos por quase todo o trajeto do dia. Me esqueci dos calçados enquanto caminhávamos. Sinal de que a prosa estava boa e a cola, firme. Fui salvo pela mulher chata, pensei. Precisava rever o que pensava sobre as pessoas que eu mal conhecia.


Quando chegamos à cidade, reencontrei as duas amigas que caminhavam comigo. Estavam na porta do albergue onde pretendíamos dormir. Cheguei com a holandesa, minhas amigas não gostaram. Me chamaram num canto, queriam dispensá-la. Armaram uma fuga à francesa. E quando íamos saindo de mansinho, voltei.


Não consegui ir embora sem me despedir da peregrina. Nos olhamos, entendi que ela sabia o que as minhas amigas estavam fazendo. Ainda assim agradeci. Depois pedi desculpas. Ela não me disse nada, não me desculpou. Me deu um abraço, foi novamente gentil, como quando precisei de ajuda e ela apareceu com a cola.


Minhas desculpas não colaram. Tive essa sensação. Fui embora como o meu solado velho, esfarelado.


Até hoje ainda não me desculpei.

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