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Cômodo vazio




Passei a vida, e ainda passo, respondendo perguntas curiosas das pessoas quando elas descobrem que tenho um irmão gêmeo. Normalmente querem saber se somos idênticos, então eu mostro uma foto para elas verem como somos parecidos. Outra coisa que procuram saber é se sentimos as mesmas dores, ou se passamos mal juntos, ao mesmo tempo. Essa é uma ideia meio mística que as pessoas cultivam sobre nós, irmãos univitelinos.


Vocês usam as mesmas roupas? Já trocaram de namoradas? Sua mãe confunde vocês? Têm os mesmos gostos? Escutam as mesmas músicas? São perguntas como essas que fui me acostumando a responder durante a vida. Uma das que mais gosto é a seguinte: como é ter um irmão gêmeo? É uma pergunta que me provoca. Então começo respondendo que não sei o que é não ter. Depois continuo com outra pergunta: como é não ter? Acho que a resposta da primeira está na diferença entre as duas.


Quando aprendi na escola que gêmeos univitelinos são gerados a partir de um zigoto divido ao meio, fiquei fascinado em pensar que eu e meu irmão somos, cada um, a metade do outro.


Penso mais em nós gêmeos hoje do que antes. Sempre foi normal ser gêmeo. Hoje compreendo melhor o espetáculo que somos. Uma exceção, um acontecimento raro, um ponto a ser observado nesse planeta cheio de pontos. E daí me lembro de nossa vida nas escolas, nas festas, nas ruas, das pessoas curiosas perguntando sobre os gêmeos, o tempo todo, em qualquer lugar. Além do meu nome, por exemplo, me acostumei a ser chamado de Henrique. E de gêmeos. Muitos trocavam nossos nomes por esse apelido simples, os gêmeos. Éramos populares na escola simplesmente por sermos os gêmeos.


E por me acostumar com a vida gemelar, por tanto ouvir o que as pessoas diziam sobre gêmeos, dias atrás me bateu uma angústia quando me dei conta de que eu só sabia a metade da minha vida. Foi como se, de repente, eu descobrisse um novo cômodo na minha casa, ainda vazio. O lugar das histórias que eu não sabia sobre o meu irmão.


O que o Henrique fazia quando eu, aos quinze anos, passava a tarde na biblioteca que ficava perto de casa? O que o Henrique fazia quando eu ia ao cinema com minha namorada? O que o meu irmão, minha outra metade, fazia quando eu tocava violão no meu quarto? Onde o Henrique estava?


Que angústia não saber sobre a outra metade da minha vida, que as pessoas diziam que era a minha, mas não era.


Liguei para o Henrique na mesma tarde em que essa angústia me abateu. Comecei a conversa como a gente sempre conversava, perguntando como ele estava, falando sobre suas férias, sobre o fim do mestrado, coisas que eu já sabia... Depois, sem demora, dividi com ele a angústia. O que você fazia quando eu passava a tarde na biblioteca ao lado de casa? O Henrique riu.


Eu fazia as mesmas coisas que você, como se achasse que eu estivesse brincando.


Sua resposta me deixou ainda mais angustiado. Foi com ela que percebi que não sabíamos contar sobre as nossas histórias individuais. E que contávamos sobre nós como se as duas vidas fossem mesmo iguais. Mas não eram. Nós só não sabíamos contar a outra metade da história.


Eu insisti. Me conta o que você fazia de verdade. Ele riu outra vez, pensou um pouco mais e começou a narrar a história dele, a que eu não sabia, como se trouxesse para o cômodo vazio as suas mobílias.


Continuei curioso perguntando o que ele fazia quando eu ia para a casa dos meus amigos. Você ia para a casa dos seus amigos também?, eu insistia. Quais amigos?, eu queria saber. O que você fazia naquele dia em que eu fugi sozinho da escola? Me conta a outra metade da história, eu pedia. E o Henrique, entre risadas, ia trazendo novos móveis, ocupando o cômodo com as histórias que até então eu não sabia que existiam.


Eram os móveis dele chegando à minha casa. E os meus chegando à casa dele. Sem mais cômodos vazios.

Ali, naquela conversa, pela primeira vez, éramos duas casas inteiras.

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