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Coração com patas


Na infância, eu adorava apelidos. Passei anos querendo que meus amigos me dessem um bom. Nunca tive.


Até gastei algum tempo tentando me dar o meu próprio apelido. Um que as pessoas usassem e se divertissem comigo. Mas descobri, com os anos, que apelido não se cria. Se conquista. Para o bem ou para o mal.


Na adolescência, com o cabelo grande, sofri bullying. Ganhei apelidos maldosos, com o intuito de me magoar. Me magoaram. Então eu cresci e esqueci essa história dos outros nomes.

Em 2017, fui fazer o Caminho de Compostela pela segunda vez. Conheci peregrinos do mundo todo. Em especial, dois espanhóis: o Carlos e o Sebas.

Foi no Morro do Perdão que nos encontramos. Eu estava ansioso para chegar ao Morro, pois era uma paisagem que eu havia visto num filme. Então, quando cheguei ao Morro, resolvi fazer uma pausa para aproveitar a cena. Havia muitas placas falando do filme e de sua importância para a popularização do Caminho. Fiquei por ali alguns minutos, descansando e me perdoando...

Foi quando conheci Sebas e Carlos, espanhóis de aproximadamente cinquenta anos. Eles caminhavam juntos, pareciam até amigos antigos. Pouco depois, descobri que haviam se conhecido naquele dia. Histórias do Caminho. Conversamos, rimos, e este instante me marcou. Fiquei feliz por criar laços mais divertidos, ao invés de doloridos, na jornada.

Nos dias seguintes, nos reencontramos algumas vezes. Ora caminhando, ora num café ou num albergue. Cada dia mais íntimos e com mais graça. Num desses reencontros, sem saber que Sebas era um policial aposentado, gritei “Cabron!” quando o avistei de longe. Foi Carlos que me me alertou que “Cabrón” não era um bom apelido para usar com policiais, tinha um sentido pejorativo. Mas Sebas, pelo contrário, ria, quanto mais eu repetia a graça. Nosso laço estava se firmando.


Quanto mais nos conhecíamos, mais nos abríamos com o outro. Passamos a falar das dores também. No Caminho é assim que se faz um amigo, caminhando sem parar, como formigas, com o peso das mochilas, dos risos e das dores sobre as patas.


Perto do fim, me perdi de Sebas. Não o vi por alguns dias. Até que, no penúltimo dia de caminhada, o avistei na trilha, sentado sobre uma pedra. Era um Cabrón cansado e, talvez, com dores mais profundas. Eu caminhava com duas amigas, que seguiram enquanto eu me sentava com Sebas. “Eu só saio daqui com você”.

Eram muitas as dores, ele dizia enquanto ria e chorava. Não queria parar de caminhar. Claro! Um policial aposentado não poderia abandonar uma batalha assim. Havia muito orgulho naquele corpo triste.

Fiquei com ele, mesmo com a insistência para que eu seguisse. Esperei sua dor diminuir. Nos levantamos, caminhamos juntos, a passos lentos, por algumas horas até chegarmos ao destino daquele dia. Depois fomos tomar vinho, comer polvo frito e rir das dores que sentíamos.

Voltamos a nos reencontrar em Santiago, dois dias depois. O riso e o choro já não se distinguiam em nossos rostos. Éramos a felicidade pelo fim da caminhada de trinta dias. E a tristeza pelo fim da graça juntos.

Nos despedimos com um abraço largo, com os ombros molhados de carinho. E com um presente que Sebas me deu:

“Lucas. Eres um corazón con patas... Un corazón con patas!”


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