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Cheio de graça



“O Luca gosta de fazer gracinhas”, minha parceira comentou no bar enquanto conversávamos com o meu irmão. E contou que na semana anterior, na praia, eu tinha feito várias gracinhas. Uma com a recepcionista da pizzaria e outra na areia, com o menino do quiosque. Eu disse que não era bem assim. Mas depois não prestei mais atenção no que eles conversavam. Fui para outras lembranças.

 

Primeiro eu me lembrei que para distinguir eu e o meu irmão nas fotos antigas da família, minha mãe dizia que bastava procurar o que ria mais. Todo mundo ria, mas eu tinha um riso mais largo e espremia meus olhos com as bochechas, ela explicava. Depois me lembrei também que os amigos da escola costumavam dizer que eu era o mais extrovertido. Diziam isso em relação ao Henrique, meu irmão gêmeo, e era o que ajuda a nos distinguir.

 

Continuei indo às memórias. Me lembrei do meu pai, que adorava as gracinhas. Nos botava apelido, repetia piada sem graça até ficar engraçada. O pai era um comunicador, mais extrovertido do que nós. Mas também fazia umas graças ruins, que enchiam um pouco o nosso saco. Até passamos a brigar mais com ele, para que parasse de fazer as piadas, mas não deu tempo.

 

Lembrei também do meu tio, o irmão da minha mãe, que eu adorava. Ele era divertido, gostava de brincar com os sobrinhos, contava piadas bobas, fazia cócegas em mim até eu quase me mijar. Mas ele também passava do limite com as brincadeiras. Depois eu cresci e conheci mais a fundo o tio, e vi que suas graças eram muito piores. A vida, para ele, era uma gracinha sem fim. Gracinhas que o levavam sempre a brigar com minha mãe, minha avó e até com os sobrinhos.

 

Eu adorava também o meu avô. Na infância, ele nos buscava na escola já com um bocado de gracinhas escondidas no carro, debaixo do banco, no porta-luvas, no porta-malas. O vô escondia os biscoitos para os netos acharem. E como ele nos adorava, fazia graça nos dando presentes e preparando o chá da tarde com pão e manteiga, e brincadeiras que alegravam nossos momentos com ele. Foi com as histórias que a mãe me contou depois que ele morreu que eu vi que a graça era só com os netos. Com as filhas e a mulher, era um pouco mais sem graça. E até machucava.

 

Também tive uma namorada que não via graça alguma em mim. Nem no dia em que eu saí do banheiro só de bigode ela viu graça. Não terminamos por isso, foi pela falta de outas graças, de conversas, de transas.... Com um amigo da juventude, foi com uma gracinha que fiz com ele num bar, há uns quinze anos, que no outro dia me enviou mensagem para dizer que me odiava. Foi uma gracinha bem boba, mas sem ofensa alguma. Mas serviu de pretexto para assumir que não gostava de mim.

 

Fiz essa viagem na memória enquanto a conversa no bar continuava, não mais sobre as minhas gracinhas, mas sobre a força das palavras. É só uma questão de semântica, meu irmão dizia, enquanto eu pensava na herança que eu havia herdado.

 

Eu disse que não era bem assim. Mas no fundo era.

 

 

 

 

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