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A seta invisível

  • Foto do escritor: Lucão
    Lucão
  • 23 de ago. de 2024
  • 2 min de leitura


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Nina foi uma personagem que criei no livro Amores ao Sol, inspirada em algumas mulheres que conheci no Caminho. Quase uma década depois, ela ainda reaparece nas minhas histórias, ora como ficção, ora como memória. Minha sensação é de que não sei mais distinguir a história inventada da real; e que, agora, todas são uma mistura entre o que vivi e o que inventei para lembrar; que os desejos ocuparam o lugar do esquecimento; um alargamento da memória para dar vida ao que não consigo mais ter comigo; personagens com histórias já encobertas pela areia do tempo.


Pois bem, eis aqui uma escavação:


era muito cedo, antes das sete da manhã, e eu já caminhava desde às seis rumo à cidade de Estella, na Espanha. Parei para um café rápido na última cafeteria às margens de Puente la Reina, cidade em que eu havia me hospedado na noite anterior. A etapa do dia seria de vinte e dois quilômetros de peregrinação, em um dos verões mais quentes da Europa. Um dia difícil, como qualquer outro dia do Caminho.


Foi na saída, na última curva antes da cidade sumir, que a vi. Nina caminhava devagar. Avistei seu vulto à minha frente, a uns trinta metros de mim, enquanto o dia ainda dividia o céu com a noite. Mais adiante, uma bifurcação na estrada separava o caminho em dois. Uma placa que sinalizava o fim da estrada se ofuscava pelos primeiros brilhos do sol ao fundo. Naquele ponto, Nina fez uma pausa rápida diante da sinalização, antes de seguir seu caminho à direita. Quando me aproximei do mesmo ponto, demorei a encontrar a seta amarela, que nunca se apresentava do mesmo jeito, mas sempre aparecia. Era preciso olhar com calma para enxergar a direção. Fiz uma pausa maior do que a de Nina, até encontrar a seta amarela pintada no canto inferior da placa indicando o caminho à esquerda.


Nina se enganou, pensei.


Em um ritmo lento, comecei a caminhar, enquanto pensava no meu desejo de seguir sozinho, na minha vontade de caminhar no meu ritmo. Pensei também na minha timidez, na energia que eu investia com pessoas que eu não conhecia. Depois pulei para outras lembranças: dos amigos que fiz no meu primeiro ano de peregrinação: de Joaquin, de Luca, Catalina, Omar, Jacinto; da companhia que me fizeram nos trechos difíceis; de como suas presenças diminuíram minhas dores; e como seus afetos me trouxeram de volta ao Caminho.


Nina caminhava e olhava em minha direção, como se soubesse que estava perdida, mas não pudesse pedir ajuda... Então eu gritei “Peregrina!”, como os meus amigos fizeram quando eu me perdi. Gritei e gesticulei a ela movimentos universais para indicar que o Caminho era “por aqui”. Fiz isso três vezes, até que ela entendeu e começou a caminhar para o outro lado.


Nina era espanhola, holandesa, americana, colombiana, portuguesa, brasileira. Nina era as mulheres que, na dúvida, caminhavam. Como eu, com dúvidas, com dores, em mais um dia difícil do Caminho...


Só que agora, talvez, um pouco mais fácil para nós dois.

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