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Quem dá corda no relógio de cuco?


A casa do vô Zé, meu avô paterno, tinha aquele piso antigo, de cimento queimado vermelho. Era assim que eu distinguia as casas dos meus avós, pelo piso. E pelo afeto.


Os avós maternos eram os mais próximos, mais afetivos. Eu vivia na casa deles, passava as tardes das semanas por lá enquanto meus pais trabalhavam. Já com os paternos era diferente. Eu ia pouco, uma vez ao mês, num almoço de domingo, com a família do meu pai reunida, a mesa farta, o frango caipira fervilhando no fogão à lenha. Era uma cerimônia ir à casa do vô Zé.


Tive pouco contato com Seu Zé Cândido, como era conhecido. Me recordo vagamente da fisionomia do vô, lembro que era alto, tinha a coluna ereta, não fumava e nem bebia... Mas me lembro bem da casa em que ele morou quase a vida toda.


A entrada era por um portão baixo, de grade enferrujada. Depois tinha a porta principal, que dava para sala, um cômodo estreito e comprido. O sofá ficava encostado na parede da esquerda e a TV do outro lado. Não me lembro de muitos móveis, mas me recordo de um relógio de cuco que ficava pendurado na parede, feito de madeira pesada e trabalhada em detalhes. Tinha cordas embaixo, com pesos pendurados, e em cima, uma caixa com uma pequena porta de onde saíam os cucos.


Só depois que cumpríamos o ritual de cumprimentar os tios e primos espalhados pela casa, e de pedir a benção para os avós, podíamos brincar no quintal ou assistir ao relógio de cuco tocar.


Me divertia com o relógio. De hora em hora ele fazia o “cuco”. Quando os ponteiros da hora davam a volta completa, uma portinha no topo do aparelho se abria e dois passarinhos surgiam para anunciar as horas. Eles cantavam “cuco, cuco” sem parar. Ao meio-dia, faziam isso doze vezes para anunciar a hora do almoço. Depois desapareciam e só voltavam à uma da tarde, com um “cuco” só. Nesse tempo, eu me perguntava o que os “cucos” faziam enquanto não trabalhavam. Também queria saber como era a casa deles por dentro, coisas de crianças curiosas.


Mas teve um tempo em que o cuco parou de tocar. Os passarinhos não apareciam mais. A casa do vô ficou silenciosa e fria.


Um dia notamos a ausência do vô. Minha mãe dizia que ele estava no quarto descansando. E tinha mesmo alguma coisa acontecendo no quarto. Os tios não ficavam mais espalhados pela casa. Ficavam na cozinha, fazendo vigília na porta do cômodo onde o vô estava. Para mim, aquele cômodo era como a casa dos cucos do relógio, que eu não conhecia e só podia imaginar o que acontecia ali dentro.


Um dia entrei, com medo, segurando a mão de minha mãe. Era um quarto um pouco mais escuro do que a casa. Encostado numa parede, tinha um armário de madeira de tom avermelhado igual ao do cuco. Na outra, a cama do vô. Ele estava deitado, imóvel, respirando lento. Me sentei na cama por alguns minutos, ficamos em silêncio ao lado dele e depois saímos, numa visita breve e triste.


Ele passou alguns dias, talvez até meses, deitado nesse quarto. Voltei a vê-lo no seu funeral, a última cerimônia com o vô.


Só anos depois fui saber que ele havia morrido de câncer.


Só anos depois percebi que quem dava corda no relógio de cuco era o Seu Zé Cândido.

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