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Mente vazia, oficina do sossego

Não costumo falar muito deles, dos dias difíceis. Mas ontem foi um dia tão cheio de encrencas e de acontecimentos ruins, que resolvi divagar sobre ele.

Além das notícias da pandemia e das pessoas que me deixaram pessimista sobre esse momento, o dia não andou, não consegui trabalhar com o que me motiva, me irritei com pessoas que não me ajudaram e isso me deixou com mais raiva. Não gosto de depender dos outros, gosto de trabalhar sozinho, quieto. Mas ontem não deu.

Daí eu lembrei de uma coisa… Eu não sou uma pessoa de posses. Gosto de despossuir. Não tenho muitos aparelhos eletrônicos em casa; roupas, também são poucas; os móveis, eu gosto deles menores, para sobrar espaços para os vazios. Fiquei pensando sobre isso, que ontem eu senti raiva por ainda ter coisas demais…

Passei o dia tentando resolver um problema de um sofá que comprei pela internet. Quando chegou, a cor era outra. Pedi a troca do produto, mas a demora tem sido tanta, que me deixou angustiado. Além da morosidade, me pediram para reembalar o “produto” para a coleta. Fiquei mais de um dia ao telefone explicando à empresa que o “produto” era um sofá, e que não tinha jeito de reembalá-lo porque ele tinha dois metros e meio de comprimento e eu não tenho “saco” para tanto. Me recomendaram usar sacos de lixo remendados, e explicaram que se ele não estivesse embalado, a transportadora não coletaria. Era a regra. Então eu fiz. E no dia limite para a coleta, a transportadora não veio. Hoje faz dias que estou com o sofá na sala, embalado com sacos de lixos remendados.

Também tive problemas com um kit de teclado e mouse que comprei para ter mais conforto no home office. Com uma semana de uso, uma tecla quebrou e eu pedi reembolso. A cortina que eu comprei para a sala não serviu, é muito fina e não bloqueia a entrada de luz. Os dois bancos de madeira que comprei para a mesa da cozinha descolaram e ruíram.

Eu sei que essas coisas acontecem, mas não deviam acontecer. A gente aceita, se conforma e vai levando a vida cheia de raivinhas, adquiridas com compras, com posses, que as empresas nos fazem acreditar que precisamos. Mas não é verdade.

Daí me lembrei do Caminho de Compostela.

Por lá, o que eu mais aprendi a foi a dester. Nas minhas duas jornadas, enquanto caminhava, ia deixando para trás algumas roupas que levei em excesso, itens de higiene que estoquei erradamente, remédios que nunca precisei, pensamentos inúteis, pessoas ruins… E a jornada foi ficando mais leve. Descobri mais felicidade nos espaços desocupados do que nos cheios. Da última vez que fui, troquei meu mochilão por uma mochila pequena e dois pares de roupas baratas. Levei isso na bagagem, minha riqueza, o vazio.

Ontem senti falta dele.

Foi isso, me irritei porque a vida, sem eu perceber, me roubou o vazio, se abarrotou novamente. Mas agora estou melhor. Eu diria, satisfeito comigo mesmo por ter conseguido refletir e me recolocar no lugar que é meu. E por não ter deixado a casa se encher novamente.

Amanhã eu vou jogar as tralhas fora, conquistar vazios, dester mais um pouco… E depois eu vou dester mais um pouco. E depois mais um pouco. E mais um pouco.

Até não me faltar nada.

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